Sodré, residente no alto de uma colina, estava felicíssimo, pois fora surpreendido com a inesperada visita de um amigo que há muitos anos não via. Aos abraços, o amigo manifestou preocupação com eles em razão do abalo sísmico ali registrado. Euforia aquietada, o bem-vindo visitante, curioso, dirigiu-se para o alpendre, olhou a cidade em ruínas e perguntou se não tinham sentido o tremor. Sodré negou e explicou: o que havia acontecido foi uma fúria.
– Uma fúria?
– Dos mortos.
– Dos mortos?
Contou que, aos domingos, realizavam-se concursos de poesia, na Praça Poeta Aquino Aguiar. A leitura dos trabalhos se iniciava às oito horas da manhã. Porém, naquele dia, por volta das dez horas, a esposa e ele, ali se encontrando, avistaram correria na cidade, fato inusitado, esquisito e estranho. Coisa que nunca tinham presenciado. Trocaram-se e desceram para verificar o que estava acontecendo quando foram informados da imoralidade. As poesias que estavam sendo apresentadas continham mensagens completamente adversas aos costumes da boa poesia e as mais aplaudidas eram “O que passou passou” e “Pra frente é que se anda!” Ambas, segundo informações colhidas, donas de cinismo triunfal. A correria continuava, receando serem atropelados, mergulharam num barzinho, onde logo se conscientizaram do real problema vivido: o público dividido brigava entre si. Uma corrente defendia a poesia “O que passou passou”, e a outra concorrente: “Pra frente é que se anda!” Numa clara evidência, uma vez observada amiúde, dosada de falsa defesa. Pois, a julgar pelos títulos, eram idênticas, significava o mesmo que seis e meia dúzia. Mas havia comentários de que “Saúva”, a fim de sanar aquela incômoda situação, escrevia às pressas uma poesia … O melhor poeta da cidade de Pestana, por problemas de saúde, encontrava-se afastado da Declamação Popular Dominical. Escutar as suas declamações era algo mais fascinante do mundo. Então, ao correr um novo boato de que ele estaria se dirigindo à praça, o bar se esvaziou. Ao se posicionar no coreto e anunciar o título da poesia: “Refletir”, forte vaia ecoou. Tentou dar continuidade, mas foi em vão. Findas as vaias, as correntes contrárias passaram a recitar as poesias que defendiam. Culminando com xingamentos unilaterais, garrafas de água cruzando cabeças, empurra-empurra e dedos em riste. A coisa não iria acabar bem. Para completar, escutaram que “Peito de aço”, um poeta inexpressivo, iria praticar um atentado: estaria se dirigindo à praça em poder de uma bomba de parede do tamanho de uma maçã. Abraçou a esposa, ambos se retiraram e, alguns passos adiante, escutaram uma explosão. A bomba explodira nas costas da estátua do grandioso poeta Aquino Aguiar, defensor da paz. De volta ao alpendre, ficaram observando o confronto. A força policial da cidade era a mínima possível. Dez a quinze policiais para contornar a baderna que se alastrava? Era impossível. O tempo passava. Disparos de arma de fogo se ouviam e sirenes de ambulância também. Por volta das dezesseis horas, imenso comboio de caminhões da polícia de choque adentrou a cidade. Os soldados, fortemente equipados, desciam dos veículos ainda em movimento e enfiavam-se pelas ruas adentro. Numa ação visivelmente percebida, concentrada no Bairro de Livreto, onde residia o grande poeta “Saúva”, autor da recente e desprezada poesia “Refletir”. Muitos tiros ali foram disparados. Labaredas e fumaça subiam das edificações. Em dado momento, a rádio local anunciou que “Saúva” havia sido alvejado. Como o amigo podia avistar – situado à boa distância – a pequena edificação caiada no meio dos eucaliptos era o cemitério. De repente, observado pela esposa, foram avistados seres e mais seres saindo dali: muitos milhares, milhões. Até parecia que os cemitérios do planeta eram subterraneamente interligados. Enfurecidos, com tamanha insensibilidade do público, marcharam de encontro à cidade. Adentraram a cidade portando faixas. Foi possível ler: ‘“O que Passou passou... Pra frente é que se anda uma ova! Refletir!”’ Policiais e pestanenses foram atirados para o alto, bem como arremessados à longa distância. As casas, os sobrados e as robustas edificações, envolvidos por centenas de milhares deles, uma vez sacudidas, não resistiram e ruíram. Um horror. Muitos foram mortos, tudo foi destruído.
– “O que Passou passou… Pra frente é que se anda uma ova! Refletir!” – balbuciou o amigo.
– Exigiam. – enfatizou Sodré.
A FÚRIA DOS MORTOS
ILUSÃO OU FATO?