EDUARDO DAMASIO - III

Plínio, do curso de arte, ao adquirir uma fita magnética que continha contundente gravação anônima, pinta uma tela e convida Darte para apreciá-la... Darte, após observar a tela pintada por Plínio, ouve da fita a gravação:


IMPRÓPRIO PARA O MUNDO 

         “Mila tem vinte e oito anos de morta. Mila vive do que tece. Mila não ingere migrry. Mila dorme e desperta com as galinhas. Cuida da horta, do galinheiro e do curral. Mila prepara o dejejum. O almoço e o jantar. Mila varre, passa e apimenta. Mila ganha sonhadores trocados. Alegria de Mila. Do açougueiro, do padeiro e do boticário. Mila sabe quem e o que ela é. Mila adora devaneio: missa, festa e cerimonial. Mila ama e é amada. Lê e é lida. Chora e ri. Mila é feliz. São nuas as paredes do quarto de Mila. Se Mila pudesse, teria apenas sua foto pendurada em uma das nuas paredes do seu afugento... Mila tem vinte e oito anos de morta. Mila varrendo o pátio lar de Mila, encontrou um longo fio de cabelo. Longo fio de cabelo, dos longos fios dos cabelos de Mila.”
          Darte, após ouvir a gravação, encabulado, volta a olhar para a tela.
          – Retrata a gravação? – pergunta Plínio.
          –… Ouvindo a gravação e olhando a tela, retrata… – confessa o amigo.
          – Abraçam a realidade?
          Darte medita.
          – De qual realidade se trata?
          – A realidade exposta na tela e na gravação.
          Darte diz que eram frágeis para tecer tamanha opinião. Plínio concorda, balançando a cabeça e retruca:
          – Sabe quanto desembolsei para obter essa gravação?
          –…
          – Nada. Uma empoeirada relíquia que, há oitenta e sete anos, passa silenciosamente de mão em mão sem custo.
          – Relíquia da voz humana gravada numa fita magnética?
          – O pai da primeira gravação rudimentar da voz humana foi Édouard-Léon Scott de Martinville, em 1860. Evidente que o interesse pela relíquia não se resume a voz humana gravada numa fita magnética. Resume-se a mensagem protagonizada. Quem teria sido a mulher que gravou? Pergunta interessante. A esposa de algum cientista envolvido no projeto ou alguma empregada do laboratório?
          – Encantei-me com a ternura da voz.
          – Esse conjunto de palavras foi e ainda são consideradas impróprias para o mundo…
          – Estrondoso grito de emancipação da mulher?
          – Seria possível sim: o grito de emancipação da mulher. A gravação foi apresentada em 1935 em um espaço para escutarem o avanço tecnológico: a voz humana reproduzida numa fita magnética. Ao escutarem isso, madames com ares reivindicativos se abanaram com leques, e senhores sisudos uniram sobrancelhas. Portanto, seria possível ter sido estrondoso grito de emancipação da mulher. Possível sim. Porém, como se acredita, seria controverso isso porque “Mila” diz que era feliz. Como também, aproximando-se de algo mais profundo, ressalta: “Mila varrendo o pátio lar de Mila, encontrou um longo fio de cabelo. Longo fio de cabelo, dos longos fios dos cabelos de Mila.” Assim, acredita-se que o ensaio não evoca tal apelo: do grito de emancipação da mulher.
          –…
          Plínio, continuando, diz:
          – "migrry" não significa promessa. A política, como sempre metendo bedelho, disse que havia forte conotação ideológica, uma vez que Mila ganhava sonhadores trocados: alegria de Mila. Do açougueiro, do padeiro e do boticário. Isso rendeu bastante. Porém, certo influente senhor afirmou, categórico, que migrry significava sonho, palavra extraída de medieval dialeto africano. Assim entendeu que o anônimo ensaio era, para não dizer constrangedor, uma confissão imprópria para o mundo.
          Darte olha para a tela; Plínio balbucia:
          – Mila tinha vinte e oito anos de falecida. Vivia do que tecia. Dormia e despertava com as galinhas. Cuidava da horta. Do galinheiro e do curral. Preparava o dejejum. O almoço e o jantar. Varria, passava e se divertia. Ganhava sonhadores trocados: alegria do açougueiro, do padeiro e do boticário. Sabia o quê e quem ela era. Adorava devaneio: missa, festa e cerimonial. Amava e era amada. Lia e era lida. Chorava e ria. Era feliz. Nuas as paredes do quarto. Se pudesse, teria apenas a sua foto pendurada em uma das nuas paredes do afugento. Tinha vinte oito anos de falecida. Varrendo o pátio lar de Mila, encontrou um longo fio de cabelo. Longo fio de cabelo, dos longos fios dos cabelos de Mila.
          Darte, recolhendo pensamentos, pergunta:
          –… Será que o ensaio se refere ao que estou imaginado?
          – Acredito que a tela que eu pintei retrata o que você está certamente imaginando. – replica Plínio.
          Darte olha para a tela:
          Via-se um varal em um quintal. Em um dos fios do varal havia um prendedor “Mila”, afixando um longo fio de cabelo.
          – O influente senhor disse que “migrry” significa sonho e assim, por ser constrangedor, considerou o ensaio impróprio para mundo. – conversa Darte.
          – Foi. – concorda Plínio.
          – “Mila não ingere sonho”… Consideraria indelicado, se bem que resulta no mesmo.
          – É verdade
          – Em quê o senhor exercia influência? – quer saber Darte.
          – Não se sabe… Constrangedor combina com realístico? – pergunta Plínio.
          A tela retratava o que certamente é realístico. Em um dos fios do varal, um prendedor afixando um longo fio de cabelo.

 
ILUSÃO OU FATO?