NOSSA SENHORA DO SOCORRO

         O casal Júlio e Juliana sofria de demência. O que não os impedia de exercer a vida cível. Bons profissionais, por sinal, eram arquitetos. Casados recentemente na Capela Nossa Senhora do Socorro. Tão logo o despovoado evento, foi surpreendido pelo desemprego, cuja relação entre os fatos é farto de suspeição. Então, num desses dias de abatimento, proporcionado pela perda da rendável ocupação, encontraram na maçaneta da porta do pequeno apartamento em que residia um cartão de uma agência de recrutamento de pessoal. Trocaram olhares. Desistiram do itinerário que fariam e se dirigiram para o almejado abrigo. Depois de uma breve conversa com o gerente de recursos humanos, o casal deixou a agência com ótima proposta de salário e praticamente empregado. Juliana daria assistência a um jovem senhor, e Júlio trabalharia como assistente. O turno de trabalho seria de 22:00 às 7:00 da manhã. No entanto, para que a efetivação acontecesse, necessitaria que fossem avaliados pelo mordomo do contratante carente.
          –… Nós somos arquitetos, Júlia.
          –… É…
          Sem delongas, o mordomo os entrevistou e os aprovou. Explicou demonstrativamente a Juliana como procederia no atendimento do senhor Alan Bráulio. Falou sobre a necessidade de um acompanhante no plantão, apontou o local onde deveriam permanecer durante o horário de trabalho e disse que, a partir das 22:00 horas daquele dia, contaria com a presença deles.
          – Feliz com o emprego? – perguntou Júlio no trajeto de volta para casa.
          –… Sim… − replicou Juliana.
          Então, já no primeiro dia do plantão vencido, estavam exaustos devido à falta de costume de passarem a noite às claras. Em casa, tomando o café da manhã, para em seguida dormirem, Juliana disse que não estava bem certa, mas aquele ambiente não era desconhecido. Havia sentido aquela sensação no momento em que o mordomo mostrou-lhe o trajeto que faria. Mas, naquela noite, ao fazê-lo por três vezes, para atender o jovem senhor Alan, ficou evidente. A grande pintura de um dragão, exposta na requintada sala de estar, lhe era familiar. Bem como o mobiliário e as escadarias de mármore. Meditaram e, no jeito deles, deram de ombros. No segundo dia de mais um turno vencido, também à mesa no café da manhã, Juliana, com se tivesse passado a noite distante do esposo, mostrou-lhe uma pequena boneca, e disse que a havia recuperado detrás da cristaleira da sala de estar. Aquela boneca era sua. Afirmou. Ficaram meditando e foram se deitar. No terceiro dia de plantão, Júlio, pensativo, passou a noite olhando para Juliana. Expediente encerrado e, retornando para casa, disse que deveriam procurar a polícia para explicar o que estava acontecendo.
          –… Procurarmos a polícia, Júlio?
          –… Sim…
          Dirigiram-se para o complexo policial e acomodaram-se num banco. Um investigador, que já havia cruzado com eles dezenas de vezes, não mais resistindo vê-los sentados dedilhando os dedos e olhando para o tempo, perguntou-lhes o que desejavam. Olharam-se e contaram o que se passava. Após ouvi-los, o investigador balançou a cabeça e disse que poderia apresentá-los ao escrivão, porém anteciparia que recusaria a queixa porque não havia elementos que justificassem acatá-la.
          – Infelizmente. − lamentou.
          Júlio levantou-se e se afastou. Juliana, observando-o, confessou que o esposo sabia que eles eram meio… havia se afastado para chorar. O investigador meditou por momentos e disse que investigaria por conta própria.
          – Necessito apenas de algumas informações. − disse o investigador.
          O investigador esteve no endereço da agência de emprego e, ao dar de cara com a porta fechada, um senhor lhe informou que ali funcionava uma oficina de conserto de TV. Estivera aberta num daqueles dias. Mas havia voltado à normalidade.
          – Normalidade?
          – Boa parte do tempo fechada.
          Olhou para o forjado cartão de apresentação que lhe havia sido entregue pelo casal: “Única unidade impressa numa computador da vida.”
          Visitou a senhora que Juliana disse ser sua mãe. A mulher contou-lhe que Juliana tinha cinco anos de idade quando a acolheu. Havia lhe sido entregue pela amiga Tamira para que ficasse sob os seus cuidados por alguns dias. Segundo Tamira, a mãe da menina havia falecido. Tamira, como se tivesse cavado um buraco na terra, desapareceu. Apegou-se à garota carente de cuidados especiais. Conseguiu criá-la. Deu-lhe o seu sobrenome. Estudou e se formou. No entanto, Juliana tinha recentemente se declarado de mal com ela. Não gostou de sua manifestação de preocupação de pretender se casar com um homem que também vivia num mundo distante.
          – São meios…
          – Sim.
          A senhora, curiosa, quis saber do investigador o motivo da visita. Pensativo, respondeu que trabalhava como amigo. Manteria informada.
           Mas a própria maldade, que estava reservada para o casal Júlio e Juliana, virou bicho e engoliu os donos. Enquanto dormiam, após mais uma noite de plantão, Tamira era assassinada pelo mordomo da residência em que serviam. O crime fora por volta do meio-dia. Tamira não conseguiu abrir o portão de acesso de veículos para escapar dos disparos e o mordomo não conseguiu evadir. Pois, ocasionalmente, havia uma viatura policial próximo ao local. Momentos depois, Alan Bráulio falecia. O coração fragilizado de tanto ‘cheirar’, não suportou xingamentos e disparos de arma de fogo no interior de sua faiscante residência. O investigador anjo, ao saber do assassinato, correu para delegacia competente a fim de acompanhar o depoimento do mordomo... Ora, a sempre dona do próprio nariz, a mãe biológica da Juliana, Zizabel. Não havia falecido há vinte anos como acreditava a mãe de criação da Juliana. Sim, há dois anos. Zizabel, aos quinze anos de idade, concebeu Alan Bráulio e, quinze anos depois, em outro relacionamento, concebeu Juliana. Esta, aos quatro anos de idade, apresentou comportamento estranho. Zizabel vivendo uma vida intensa e seus pais na cola, pois viviam sob o mesmo teto. Em mais um dos retiros dos ‘xeretas’, aproveitou para ‘exportar’ a filha. Recentemente, num infeliz expediente da vida, Zizabel e os pais faleceram, vítimas da queda do jatinho da família. O tio, o terceiro e último herdeiro dos Bráulio, viu no Alan um herdeiro descartável. Alan Bráulio não seria morto por excesso de medicação. No seu aposento havia uma câmera que flagraria o cunhado e a meio-irmã, respectivamente, “Júlio e Juliana” sufocando-o até a morte. A cena estaria registrada. A partir daí, com a ajuda de Tamira, apresentariam uma história cuja mentora do assassinato seria a lucida mãe adotiva de Juliana. Mas, como foi dito, a maldade virou bicho e engoliu os donos. Tamira tentava desqualificar a participação do mordomo para obter melhor recompensa, sendo que o desentendimento, evoluindo, resultou na tragédia. O fato, uma vez sido minuciosamente esclarecido, tempos depois, decidiu-se que o investigador anjo seria o administrador dos bens do casal de dementes Júlio e Juliana.
          – Nossa Senhora do Socorro é uma mãezona. – abordou Juliana.


ILUSÃO OU FATO?