OS CÃES

O autor costuma convidar personagens dos esboços engavetados para dialogar. Antes de convocar Irlana, personagem da obra “Os cães”, havia lido cuidadosamente os traçados do trabalho engavetado a fim de verificar se ela fazia realmente jus ao conselho que pretendia lhe dar.



          – Boa noite, senhor! – saudou a hostilizada batalhadora, sentando-se após orientação recebida.
          –… Sempre simpática… – diz ele.
          – Agradecida.
          – Vive um problema, não é? – questiona o autor.
          – Não tenho como negar, senhor.
          – Cães vêm tirando-lhe o sono.
          – Começam a latir a partir das vinte e duas horas. Horário justamente quando me deito para dormir. Além de incomodarem, assustam, pois ficam no breu da mata latindo... latindo...
          – Soube que você agora desfruta de energia elétrica.
          – Fui atendida.
          – A propósito, é a única propriedade que desfruta do indispensável serviço?
          – Uma das poucas, senhor.
          – Tratou de solicitar o serviço tão logo se mudou.
          – Por aí.
          O autor se recorda de como ela ocupou a propriedade.
          – Perfeitamente, senhor. Tinha ideias. Porém, não tinha como pô-las em prática. Foi quando então soube que papai tinha seguido rumo com a nova companheira e deixado a propriedade para mim. Alguns metros de terras e uma pequena casa vazia. Iluminada a candeeiro. No entanto, havia algo de significativa importância.
          – Localizada próximo da cidade.
          – Sim.
          – Considera sorte ter logo acertado no ponto comercial?
          Irlana medita.
          –… Se considero sorte ter logo acertado no ponto comercial… Quantos aventureiros exploraram o ponto sem obter sucesso, senhor? Disseram-me que foram dezenas. Então pensei: quem nada possui, a metade é o dobro. Com esse raciocínio, comecei a organizar o sonhado comércio, cujo resultado não poderia ser outro. Portanto, foram meses fechando a contabilidade com um décimo do “dobro”.
          – Sente-se estabelecida?
          – Relativamente.
          O autor fuxica:
          – Sei que tem um amor, mas o ignora.
          Ela ri.
          – Pensamos comercialmente de modos diferentes, senhor.
          O autor sublinha: adoro sua modéstia. Irlana volta a rir. E ele, por sua vez, diz:
          – A carroça ficou para trás.
          –… Ficou sim
          – Época inclusive que você começava a mobiliar a casa. Com direito a colchão ortopédico.
          – Não tinha nada na casa, senhor.
          – “Lentidão” era mesmo lento?
          – Acredita?! – inquire ela.
          – Certamente.
          – Caso suportasse com o peso das mercadorias nas costas, chegaria primeiro. O animal era mesmo lento, senhor. – afirma.
          – Um dia amanheceu morto.
          –… Sim. Um dia amanheceu morto…
          – Suspeita de atentado?
          Medita.
          – Não sei, senhor… Não sei.
          – Inveja? 
          – Não sei.
          O autor acende o cigarro, olha para ela e conversa:
          – Os cães a incomodam.
          – Começam a latir a partir das vinte e duas horas. Justamente no horário em que me preparo para dormir. Ficam no breu das matas latindo... latindo... Incomodam e assustam, pois temo que invadam a casa.
          – Não dorme.
          – Os latidos vão até às tantas da madrugada. Levanto-me sonolenta, preparo ligeiro desjejum, carrego a camionete com mercadorias…
          – A qual substituiu a carroça?
          – Perfeitamente. Verifico o reservatório de água do radiador, pois se encontra furado. Ainda não tive condições de substituí-lo e sigo para a feira.
          – Já conversou com alguém a respeito da perturbação?
          – Com um casal de amigos. Mas, por precaução, conversam em entrelinhas, por isso nada entendo.
          – Não dá para entender o quê?
          –…
          – O que não dá para entender?
          – Vivo uma vida digna, senhor.
          – Eu sei. É justamente por isso que a convidei com um propósito.
          – Agradecida.
          – Pretende dar uma passada. Não muito larga, mas não deixa de ser significativa passada.
          – Pretendo sim.
          – Uma passada segura ou você acha que é segura?
          – Mantendo-me como sou. É segura sim.
          – Aceita um conselho?
          – Serei grata, senhor.
          – Ore. Deite e procure dormir. Não dê ouvidos aos cães.
 
 
ILUSÃO OU FATO?