A VIAGEM TRAÇADA POR MILENA

– Bateu-me louca vontade de viajar, Milena.
– Viajar pra onde, tia?!
– Uma viagem de lazer, criatura.
– O que lhe falta para realizar o desejo, tia?
– O que você acha que falta, Milena? Estava idealizando uma viagem para o exterior. Porém, ao analisar friamente, percebi que seria dispendioso.
– Seria necessariamente preciso viajar para o exterior, tia?
– Mais emocionante, Milena.
– Viajaria pra onde?
– Não cheguei a definir.
– Estaria eu convidada, tia?
– Claro, Milena, somos unha e carne.
– Assim sendo, tia, sugestiono preservamos o cofre e viajarmos para a capital do nosso estado. Pois, pelo que me consta, a visitei quando bebê, há vinte e três anos. Tempo esse que coincide com a sua derradeira única e passageira estadia na capital.
– Por favor, Milena.
– Porque não, tia? Seria uma viagem tão interessante quanto viajar para o exterior.
– Ora, Milena.
– Qual o motivo da discriminação, tia?
– Não seria uma viagem Milena, seria um passeio.
– São dez horas de ônibus, tia.
– Turisticamente falando, o que a nossa capital nos ofereceria, Milena?
– As mesmas coisas que oferece ao turista estrangeiro, tia. Rica em história e belezas naturais. No hotel, nos fantasiaríamos de turistas e sairíamos para conhecer os encantos que a cidade oferece. No estrangeiro, seria a mesma coisa, tia. A senhora sabia que os gringos se encantam com a Torre dos Sete Sinos? Sabia que foi a história dos Sete Sinos que originou a construção da torre? Sabe o que cada sino representa? Há muitas histórias com que os estrangeiros se encantam tia. Seremos estrangeiros e nos encantaremos também.
– …
– Escutei, certa feita, a senhora dizer desejar conhecer o cenário onde se deu certa batalha. Mas, cenário por cenário, tia, podemos conhecer o cenário onde se deu a ferrenha batalha travada entre Dentados e Desdentados. Ora, tia, reflexão para a razão de tanta estupidez seria o mesmo. Pois a batalha, a qual me refiro, confrontaram-se com muito derramamento de sangue, Dentados e Desdentados.
– Por favor, Milena.
– Não difere das demais batalhas, tia, pois também houve episódio de amor. Um dos lideres dos desdentados, “Boca nua”, era apaixonado e correspondido pela donzela “Golfada”, filha de “Dente a mais”, um dos líderes dos dentados.
– Não me faça rir, Milena. Não perderia o meu tempo visitando um lugar cujos vultos da história tinham ridículas alcunhas: “Boca nua”, “Golfada”, “Dente a mais”.
– Ora, tia. Será que certos vultos de nobres batalhas também não tinham ridículas alcunhas?
–…
–… Visitaríamos o Museu da Arte Interpretativa, tia. Onde, lamentavelmente, entraríamos mudas e sairíamos caladas.
– Qual seria o motivo do vexame, Milena?
– Não haveria vexame, tia. Porque o nosso comportamento seria igual ao de todos visitantes, estrangeiros ou não.
– Como assim, Milena?
– São telas de autores anônimos, tia, que retratam supostos ocos pensamentos: pequeno risco. Pequena linha. Pequenos pontilhados coloridos ou não. Pequeno sinal de interrogação, de reticência de exclamação. Minúscula flor. Minúsculo livro. Minúsculo ser. Enfim.
– Apenas isso que as telas retratam?
– Apenas isso, tia: Museu da Arte Interpretativa.
– Ufa!
– Pois é tia. Para a senhora, que gosta de sorvete, podemos apreciar a guloseima na badalada Sorveteria Polar, localizada na Avenida Passos Incertos, no centro da cidade. Há prédios gigantescos, tia, e largas transversais. Onde corre, segundo li, a maior ventilação encanada do mundo. Já imaginou nós duas, trajadas de turistas, sentadas a uma das mesas da Soverteria Polar, saboreando sorvete de ameixa, acariciadas em tempo com a maior ventilação encanada do mundo?
– …
– E por que não visitarmos a Ponta do Cascalho para observarmos “O mais espetacular pôr do sol do mundo?” Ora, tia, há muito que se ver. Podemos inclusive visitar a Ilha das Desesperadas…
–… Em nada estou desesperada, Milena…
– Não deturpe as coisas, tia. A ilha assim ficou conhecida durante da Batalha dos Desdentados e perpetuou. Com a partida dos homens para combater os Dentados. As mulheres permaneceram receosas com o destino dos amados. Daí, justificadamente, Ilha das Desesperadas.
– …
– Ainda segundo o que li, tia, há, na ilha, noites de boemia dedicada ao turista.
– …
– Seria uma viagem espetacular, tia. No entanto, se a senhora tivesse cogitado uma viagem para o lugar onde Ele nasceu e pregou, nada sugestionaria porque aposto não existir atmosfera similar.
–… É verdade, Milena. Não deve existir atmosfera nada igual… Mas seria uma viagem mais dispendiosa ainda, Milena…
– Uma pena, tia.
–... Uma pena… Mas pensarei na viagem que você propôs.
– Pense com carinho, tia.
– Pensarei, Milena.

ILUSÃO OU FATO?