FEITIOS

– Feitio é feitio não é, tia?
– Sem dúvida, Milena.
– Cada um de amargar.
– O inverso também é verdadeiro, Milena.
– Não no caso do casal Campilla e Valedia, tia. A governanta Nadirene também foi miserável.
– Conte, Milena.
– Enfim, tia, a senhora Valedia, 44 anos, encontrou o corpo do esposo junto ao jardim−de−inverno, tombado no chão. Havia uma faca cravada nas costas, do lado esquerdo, na altura do coração. Sendo então a única viva alma no interior da residência, a senhora deve imaginar o que sucedeu.
– Sido acusada da morte do esposo.
– Suspeita, tia.
– Entendi, Milena.
– Com o passar dos meses, por mais que o investigador particular contratado pela senhora Valedia tivesse tentado, não chegou a identificar nenhum suspeito. No entanto, dez anos depois, a ex−governanta do casal, senhora Nadirene, com cinquenta e dois anos de idade, esteve na delegacia onde o inquérito fora instaurado e confessou que estava disposta a fornecer detalhes que talvez elucidasse o assassinato do senhor Campilla. A confissão foi efetivada e, quatorze meses depois, foi a senhora Valedia encaminhada à Promotoria Pública. Na véspera do julgamento, a senhora Valedia pediu a seu advogado, doutor Gravel, para que pulasse a parte constrangedora da confissão da senhora Nadirene. O advogado replicou que a parte ‘constrangedora’ seria o ápice da confissão. Ressaltaria inclusive para que os jurados entendessem o motivo de ter guardado consigo determinante testemunho. Então, tia, a senhora Nadirene foi convidada. Prestou juramento e sentou−se. O doutor Gravel se dirigiu a ela e perguntou o que a teria levado a confessar, dez anos depois, suspeita de prova que poderia inocentar a senhora Valedia Campilla. A senhora Nadirene disse que o chamado de Deus era imprevisível. Portanto, não queria partir e nem muito menos queria que a ex−patroa partisse sem ter tentado provar a sua inocência. Dez anos eram suficientes. Impedida de usufruir dos bens que lhes pertenciam. A dívida, portanto, que a senhora Valedia tinha com ela, havia sido quitada. Doutor Gravel perguntou qual seria a dívida que a ex−patroa teria com ela? A depoente olhou para a ex−patroa. A senhora Valedia, por sua vez, tornou−se rubra. A depoente disse que, das vezes que ela se prontificava a lhe servir com alguma coisa, sabia onde encontraria: atirada no chão, num lugar qualquer do pátio… O que ela era, conforme as palavras da ex-patroa: “nega, sebosa e fedorenta, cabelo de arame… olhos de sapo.” Às vezes, acordava na madrugada com ela batendo com a palma da mão na porta do quarto e depois seguia gargalhando… Baratas mortas sobre a cama? Quantas vezes… Nas quintas−feiras, dias que não ia à faculdade Oraça, onde lecionava, enchia a cara de uísque e a convidava para deitar com ela.
– Meu Deus, Milena! Uma professora de faculdade se comportava assim?
– Segundo a senhora Nadirene, tia.
– Meu Deus!
– Doutor Gravel ressaltou: “Essa seria a dívida que a senhora Valedia teria com a senhora?” A senhora Nadirene afirmou. Continuando, solicitou a ela que repetisse o depoimento prestado na delegacia, revelando a existência de uma faca. A senhora Nadirene disse ter, certa feita, presenciado o senhor Campilla apoiar na parede uma vareta de uns trinta centímetros de comprimento e tentar comprimi−la com as costas. Em certo dia, presenciou essa mesma cena, só que usando uma faca. O promotor, voltando a ser questionado pelo juiz, se desejava a palavra, negou. Então, o advogado da senhora Valedia disse que todas aquelas suas palavras eram respaldadas com provas documentais. Disse, ainda, que, no dia da morte do senhor Campilla, a governanta, senhora Nadirene, cumprindo rotina, encontrava−se a trabalho na casa de praia da família. O casal não tinha filhos. E, ao longo das investigações, ninguém havia escapado da aproximação sutil da polícia. O senhor Campilla fora encontrado morto, deitado, com uma faca de 23 centímetros de lâmina cravada, nas costas, do lado do coração, sem impressões digitais. Daí a dificuldade de a polícia incriminar a senhora Valedia ou quem fosse. A única pessoa que se encontrava na residência, no dia da morte do senhor Campilla, era a esposa, dona Valedia. O senhor Campilla tinha como sócio o irmão que, garantidamente, era inocente. E também, garantidamente, o senhor Campilla guardava um lamentável segredo consigo: sofria de câncer, em estado avançado. Assim concluído, o juiz solicitou os laudos do processo e leu as partes que lhe interessava. Minutos depois, chegava às mãos dele o veredicto: inocência unânime da ré. No entendimento dos jurados, o senhor Campilla havia simplesmente se suicidado.
– Quis incriminar a esposa, Milena?
– Ora, tia, temperamento ordinário também não lhe faltava.

ILUSÃO OU FATO?