– Tia, a senhora acha que a juventude é sítio de loucuras?
– Caso seja, Milena, o que se pode dizer da velhice? Sítio de possível inquietação e tormento?
– A senhora foi “levada”, tia?
– Caso tenha sido, carrego comigo a minha dívida.
– Dívida pequena, média ou alta, tia?
– Das minhas sapequices estou convencida de que ninguém morreu ou agoniza.
– …
– O que há, Milena?
–… Tia, o senhor Alvim, 75 anos, após ter abandonado o recinto, sentava-se solitário a uma mesa situada a bons metros distantes de onde a festa acontecia. Mesmo fugindo do ambiente festivo, continuava a escutar a música que vinha de lá. A canção tinha como tema a juventude. Dizia que era um portal de conquistas cujo novo seria o que os ultrapassados não tiveram coragem de materializar. Concentrado na música, não percebeu a aproximação da esposa. Encarando-a, pensativo, ela pediu a ele que atirasse o cigarro fora e ofertou-lhe um petisco. Disse que tinha aprendido a ser liberal. Portanto, piercing, tatuagem, cabelos exóticos e até mesmo opção sexual, não lhe afligiam. O desagradável para o ser, ainda segundo ela, era guardar consigo desejo não extravasado.
– Por que dissera isso?
– A festa, tia era, de bacanas. Havia senhores e senhoras trajados socialmente, e maluquinhos exibindo piercings, tatuagens e cabelos exóticos. Havia também agarra-agarra de pares de sexo não opostos, ‘incenso e talco’. Mas, por que dissera aquilo? Viu, naquele momento, oportunidade de tentar extrair do esposo algo que supostamente o atormentava.
– Desconfiava da masculinidade dele?
– Tinha a certeza de que ele guardava consigo algum segredo uma vez que dedicava horas a fio em deprimente meditação. Das vezes que tentou se aproximar do suposto tormento, ele desconversava.
– Ele havia fugido do ambiente festivo cuja música o caracterizava.
– Como mencionei, tia, a música, em síntese, dizia que a juventude era um portal de conquistas, sendo que o novo seria o que os ultrapassados não tiveram coragem de materializar.
– Bichona reprimida, Milena?
– Ouça, tia. Um importante lance não havia escapado dos olhos dela: o neto deles apresentou-lhes o namorado, um simpático rapaz, que se identificou como Carlos Condor. Fora nesse momento que o senhor Alvim empalideceu, disfarçou e se retirou do ambiente.
– A mencionada identificação o incomodou.
– Isso, tia. Momentos depois o neto e o namorado os abordaram. O neto, muito animado, disse que ambos viajariam para Milão. Quando retornassem, providenciariam o direcionamento para a vida deles. A pintura era o seu forte. Porém, sabia que morreria de fome explorando o ingrato ramo. Carlos Condor, por sua vez, disse que seguiria a carreira do avô: médico cardiologista. Por sinal, dono de uma história trágica de conhecimento de poucos. Então, contou que o avô conseguira realizar o curso e formar-se em medicina na prisão, jurando inocência. Afirmava, convicto, não ter sido ele que assassinara um pedinte. Considerava o traumático episódio uma questão de estar no horário e lugar errados no momento do crime. Avistou o agressor fugir, desfazendo-se das luvas e guardando-as no bolso da calça. Por inexperiência, aproximara-se da vítima tentando retirar a faca que estava cravada no peito do infeliz, quando fora pego. Acusado do crime, foi julgado e condenado a quarenta anos de prisão. Tinha 22 anos de idade, na época. O seu único objetivo na vida era estudar e ser médico. E havia acontecido aquilo. Certo dia, o diretor do presídio o chamou à sua sala. Contou-lhe o que havia acontecido e o implorou pelos estudos. O diretor o escutou em silêncio. Tempos depois fora agraciado com uma bolsa de estudos completa cujo nome do benfeitor desconhecia. Formado, teve a prisão relaxada. No entanto, prestou serviço comunitário durante vinte anos.
– Milena!
– Pois não, tia.
– Como foi que o senhor Alvim acompanhou a história?
– Fitando o vazio.
– E a esposa?
– Olhando-o.
– Continue.
– Alguém chamou o casal de pombos. Ao se erguerem, a esposa do senhor Alvim escutou do neto algo que obviamente sabia: o bisavô fora diretor de presídio.
– Bem, Milena. Quem assassinou o pedinte foi o jovem Alvim?
– Foi, tia.
– E o jovem, então doutor, que levou a culpa?
– Sim, também, tia.
– O pai do jovem Alvim, diretor do presídio, ciente do ato pecaminoso do filho, custeou os estudos do inocente.
– Perfeitamente, tia.
– A esposa do senhor Alvim saciou-se?
– Saciou-se, tia.
– Questionou porque o esposo praticara o desprezível ato?
– O senhor Alvim, desfeito, classificou como loucura de jovem. Segundo ele, compartilhava ideias políticas e sociais com os amigos. Reconhecia tardiamente que o mundo jamais poderia ser ‘limpo’ daquela forma. Praticara a mais absurda das ideias, cujo exato sentido desconhecia.
ILUSÃO OU FATO?