NAÇÃO TUTINIBU

– Konte, tia, fora um dos estados pertencente a Kalanidu. Este país, saturado com as constantes aporrinhações de Konte, concedeu-lhe independência. Konte, ressentido por entender que as suas reivindicações nunca foram vazias, enfrentou o desafio. Organizou a fronteira e hasteou a bandeira. Cujo nome idealizado para a nova nação fora bastante enfático, Nação Tutinibu!
– O que significa, Milena?
– O que significa, tia?
– Sim.
– Escute, tia. E ainda, com propósito de manter o povo de Kalanidu longe do seu território, estabeleceu um idioma diabólico. Criaram palavras infernais. Pejorativo tornou-se substantivo, e trocaram nomes de substantivos que despertassem maldade.
– Como assim, Milena?
– Por exemplo, tia. No idioma Kalanidu, penico significava depósito de excremento. No então diabólico idioma, Tutinibu, penico significava copo: louça num geral.
– …
– Ria não, tia, porque a coisa avança. Mas, como continuavam sendo tupiniquins, o povo de Kalanidu respondia à suposta vingança com comentários desprezíveis: “Deixem viver a vidinha deles”. Os anos foram se passando, e os “tupiniquins” da Nação Tutinibu, vivendo o dia a dia da “vidinha deles”, foram se desenvolvendo. Desenvolveram-se de tal maneira, tia, que, no avanço do que fosse, estava com eles, com os tutibunenses.
– Palmas!
– Surgiu a necessidade de viagens comerciais a Tutinibu. E, assim, o povo de Kalanidu, tendo como indubitável realidade a de se expor a constrangimento, sofria. O episódio do casal Kalanidu: Kineia e Kinaldo. A empresa em que ambos trabalhavam havia oferecido-lhes curso de aperfeiçoamento na cidade de Tutibu, capital de Tutinibu. Kineia, advogada, se aperfeiçoaria em ‘lealdade’. Kinaldo, médico, se aperfeiçoaria em ‘higiene’…
– Como é, Milena? Kineia, advogada, se aperfeiçoaria em lealdade. Kinaldo, médico, se aperfeiçoaria em higiene?
– O povo de Kalanidu vivia assim, tia.
– Continue, Milena.
– O curso não era obrigatório, mas, caso não participassem… O curso, por sinal, viera em péssima hora. Os pais de Kineia viajavam a turismo; os pais de Kinaldo encontravam-se hospitalizados; a colaboradora havia se acidentado. Sendo assim, com quem deixariam os dois filhos? Questionou Kineia. Kinaldo disse que os levaria; cinco dias passavam rápido. "São pré-adolescentes, Kinaldo! Kitia está uma mocinha. Porta no idioma Tutinibu é perna! Se imaginasse a pobre coitada envolvida numa situação constrangedora?"
– De fato, Milena, seria uma situação constrangedora para a garota.
– Kinaldo, procurando amenizar a situação, replicou que fariam de conta que estariam na China. “Na China? Ai, ai! Quero ver como você reagirá em Tutinibu à mercê de um garçom de uma churrascaria da vida. Não entendeu? O garçom perguntará se deseja… calabresa no ponto ou tostada…”
– Não me faça rir, Milena.
– “Quero ver como reagirá ao ser tratado por chifrudo e eu, a seu lado, por piranha…” Chifrudo no idioma Tutinibu, tia, era esposo. Esposa, piranha.
– Tudo isso para massacrar o povo de Kalanidu.
– Isso. Então, sem opção, no domingo à noite, o avião em que viajavam aterrissava em Tutinibu. Desembarcaram, caminharam pelo túnel e, ao acessarem as instalações do aeroporto, avistaram: “Bem-vindo à Cidade de Desafiados”…
– Tutibu.
– ... Recolheram as mochilas na esteira e se dirigiram para a fila de Transportajegue. Colocaram as bagagens no rabo… No porta-malas, tia. E acomodaram-se no interior do veículo. Kinaldo disse o destino e o Transportajegue partiu. Durante o trajeto, o garoto, em dado momento, observou: “O Presidente de Tutinibu!”. No imenso cartaz via-se o cão São Bernardo.
– Tutinibu era dirigido pelo cão São Bernardo, Milena?
– Por favor, tia.
– Explique, Milena.
– Os tutibunenses extinguiram a foto pessoal de todo e qualquer autoridade. No caso em questão, o chefe da nação era representado por justa razão, pela figura do cão São Bernardo. Teria de ser assim, tia.
– Entendi Milena.
– Minutos depois, o Transportajegue estacionava a porta do Puteiro Covil.
– Puteiro?
– Hotel, tia.
– Continue Milena.
– Kinea havia murmurado: “Santo Deus!”. Naquilo de pagar a corrida e de retirar as bagagens do porta-malas, o motorista estendeu o cartão comercial que constava, obviamente, o seu nome e o número do telefone. Kineia retirou o cartão dos dedos dele e o colocou no bolso da blusa. Acomodaram as mochilas nas costas e, caminhando de encontro ao hotel, ouviram: “Boa noite, otários!” Fora o motorista ávido. Senhor, no idioma Tutinibu, era Otário… O estrangeiro, na China, o senhor Kinaldo, corou e cerrou os punhos, mas o filho o abraçou e seguiram…
– Vou ouvindo e deduzindo os significados, Milena.
− O recepcionista, antes de entregar as chaves dos estábulos disse que, caso desejassem, havia camelo para conduzir as porcarias. O amásio, o casal, ocuparia o estábulo 616 e os purgantes ficariam ao lado, no 617. Disse ainda que a criminalidade em Tutinibu era praticamente zero. Mas havia uma recomendação: a de se manter a perna fechada. “Idiota!”, disse Kineia à porta do elevador, oportunidade em que leram, escrito na parede, a sincera amabilidade: “O Puteiro Covil Saúda os Fariseus”.
– Fariseus… Hóspedes, não mesmo?
– Isso, tia. O garoto, ciente da maldade, quis saber o que significava fariseu. Kineia disse que depois explicaria. Mas eles não eram fariseus. No sexto andar, à porta do quarto 617, o casal recomendou modos aos filhos e os deixou. Ao adentrarem o quarto 616, reservado para eles, Kineia, furiosa, atirou a mochila sobre a cama e disse que a “porcaria”, era de grife. Acomodava roupas finas e caras. Desfazendo-se da blusa, de modo brutal, os botões voavam longe. Voando junto com os botões, o cartão comercial, ofertado pelo motorista do Transportajeque. Ao apanhá-lo e ler, rubra, rasgou-o miudinho, dizendo: “O da mãe, indecente...”
– Não entendi, Milena.
– Muitos tutibunenses, tia, tinham nome composto esquisito. Imagine como seria o nome do taxista para tamanha resposta?
–… Faço ideia, Milena… Meu Deus…
– Receando mais constrangimento, mantiveram-se reféns. Do hotel para a sede da empresa que oferecia o curso. Da sede da empresa que oferecia o curso para o hotel. Os filhos os acompanhavam. Almoçavam no refeitório da companhia mantendo os garotos longe da bela e farta bancada: ENGULA! Para que não lessem os nomes das viçosas refeições expostos nas etiquetas, caso lessem, não almoçariam. À noite, quando não levavam sobra do almoço, comiam pizza de franquia estrangeira. O serviço era neutro. Na sexta-feira, à noite, quando o avião que os levaria de volta a Kalanidu decolou, extravasando o sangue kalaniduense que corria nas veias, deram banana para a Nação Tutinibu. Kalanidu, tia, significava abraço.
– E Tutinibu, Milena?
– Vá tomar...
– ... Meu Deus...


ILUSÃO OU FATO?