QUANDO A JUSTIÇA É MANCA

−… Tia, a senhora acredita em Lúcifer?
− Por favor, Milena.
− Às vezes, tia, só ele para resolver certa patologia da Justiça.
− Deus existe para isso, Milena.
− ...
− Qual a história, criatura?
− A história, tia, é sobre a periclitante situação vivida pelo casal Artêmio e Acácia. Haviam perdido o promissor comércio num temporal e o único bem que lhes restava era um valorizado imóvel que estava alugado para uma família de gente descarada. Esse tipo de gente, tia, calçola e cueca furada que gosta de viver de ostentação à custa dos outros.
− Tipo que não falta, Milena.
− Pois é, tia. Residiam há três anos de favor. Então, certa noite, a compreensiva senhora Lurdes, em cujo banheiro dormia, para ceder espaço para aquela família composta por quatro pessoas, disse para Acácia que vinha suportando cada vez menos o abatimento crescente do senhor Artêmio. As duas garotinhas estavam mais crescidas e continuavam dormindo com eles, amontoadas na sala. O potencial deles era imenso. Fora uma enxurrada que os desequilibrou. O que faltava para recomeçarem? Capital. Que poderia ser obtido através da venda do valorizado imóvel, mas que estava alugado para uma família de gente safada. Sabia das orações bem como sabia das constantes idas ao fórum. Então, observando o dilema, se questionava sobre a sensibilidade de Deus e o comércio dos homens. Portanto, a única solução para o problema seria o senhor Maneca. Tentasse mais uma vez convencer o esposo da imediata necessidade de procurá−lo. O dia seguinte seria feriado e o temido homem não despachava. Visitariam as instalações sem compromisso.
− O senhor Artêmio estava irredutível com a ideia?
− Gente da paz é assim, tia. O senhor Artêmio sabia que ai daquele cuja queixa fundada fosse registrada na “delegacia” do senhor Maneca! Quando a esposa conversou com ele sobre a necessidade de resolveram o problema emperrado na Justiça e que o senhor Maneca seria a solução, ele disse que sempre quis evitar o trágico, porém lavaria as mãos. Assim, na manhã do dia seguinte, foram visitar o quartel general do senhor Maneca. E, ao contrário do que se dizia, havia pássaros...
− Por que isso, Milena?
− Porque diziam, tia, que era só ave noturna que habitava o local. Era uma imensa área arborizada. As duas garotas se desprenderam das mãos dos pais e passaram a correr divertindo−se. A senhora Lurdes mostrou a residência do temido homem situada à boa distância, passaram pela porta da “delegacia” e, adiante, lhes apresentou a capela. A porta estava aberta e, no altar, estava o príncipe da Justiça, o senhor Lúcifer!
− Deus é mais.
− Em ouro, tia. Noventa quilos de ouro maciço. O cedro e a coroa, removíveis, também confeccionados em ouro. A porteira permanecia vinte e quatro horas escancaradas. Não havia nenhum tipo de segurança e ninguém nunca se atreveu afanar. A senhora Lurdes apontou para a urna e disse que os conclusos para sentença eram nela depositados.
−… Concluso para sentença…
− As queixas, tia, transitavam sob rigorosa apuração.
− Queixa ou pedido, Milena?
− Queixa, tia. Ali era uma espécie de delegacia. Pedido se faz à Justiça. A senhora Acácia perguntou ao esposo se registraria a queixa. O senhor Artêmio, ciente de que o Príncipe da Justiça não aliviava, meditou profundo. Por fim disse que registraria. “A nossa queixa não é leviana, querido.” Ouviu da esposa. Então, tia, o senhor Artêmio, na manhã do dia seguinte, compareceu à delegacia. Quando teve a oportunidade de conhecer o senhor Maneca através da abertura da porta do gabinete. O temido homem, tia, não media mais que um metro e meio. Falava baixo e pausado. Não procurava encrenca com ninguém. E ninguém era louco de procurar encrenca com ele. Caso procurasse seria um ai, ai, ai de tormento. Estava sentado na poltrona que parecia ter sido fabricada para gigantes, lia atento os boletins de ocorrência, os quais eram formalizados pelo escrivão. O escrivão convidou o senhor Artêmio até a sua sala e, depois de acomodados, pediu para que relatasse a verdade apenas a verdade. O senhor Artêmio relatou que foram vítimas de uma adversidade da natureza não coberta pelo seguro. O meio de sobrevivência se fora. Para se protegerem da chuva, alugaram a residência. Mas aconteceu de o inquilino só pagar o primeiro mês do contrato. Quatro meses se passando sem ver um níquel sequer, propôs vender o imóvel. Ofertou um quinto do valor. Ingressou na Justiça solicitando reintegração de posse, sentiram−se ofendidos. Por conta disso, pois eram pessoas extremamente violentas, passaram a viver às escondidas residindo de favor. O mencionado processo impetrado na Justiça, protegido por quatro advogados, não avança. Regredia por sinal. O escrivão digitou o relato e depois explicou como seria o trâmite: passaria pelo senhor Maneca, seria investigado e retornaria para o senhor Maneca. Caso acatasse, seria entregue a Lúcifer para execução da sentença que, no caso, seria ação de despejo. O preço do serviço seria dez por cento do valor do imóvel, pagasse quando pudesse, mas que não deixasse de pagar. Do mais era só aguardar... Fora como uma flecha enlouquecida, tia. Igual a dominó enfileirado, os quatro mencionados advogados tombaram no mesmo dia. Um de enfarte. Outro atropelado. O terceiro foi atirado da janela após discussão com a esposa, e o quarto se enforcou. Quanto à família de bunda suja que vivia de ostentação à custa dos outros, testemunhas narraram que o luxuoso automóvel que ocupavam não havia chocado com nada, porém apresentava sinais de ter havido forte colisão. Os cintos de segurança enroscaram no corpo. As portas do automóvel, uma vez destravadas, eram automaticamente travadas. Lutaram desesperadamente em vão, tentando se livrar das altas labaredas.
− Meu Deus!
− Então, tia, quando os servidores do fórum perceberam que o casal podia se queixar ao senhor Maneca sobre a imediata reintegração de posse, pois o imóvel já estava desocupado, agilizaram para que o juiz logo assinasse o travado pedido.


ILUSÃO OU FATO?