A CULPA É DA HISTÓRIA

"Se o fato não tivesse sido negado, aposto que eles não iriam muito longe. A mina de ouro existiu."



          Eram 8h30min da manhã, um veículo, cabine dupla, vidros escurecidos, se encontrava estacionado à porta da residência de número 48. Estava ocupado por um casal que, pacientemente, aguardava o surgimento da vítima. Tão logo ela apareceu, vestiram o capuz, e desceram do carro… Foi tudo muito rápido e, em razão da identidade da vítima, nem cinco minutos se passaram para que a elegante rua de pedras ficasse apinhada de policiais. O secretário de segurança, em pessoa, ali presente, ouvia da atônita testemunha que a dupla estava encapuzada e vestia roupas pesadas.
          – Qual fora a reação da sequestrada? – indagou o secretário.
          – Assustada, terrivelmente assustada, mas se mantivera mansa, apesar de aflita.
          Os meios de comunicação já noticiavam o sequestro da primeira-dama do estado. A Secretaria de Segurança, buscando ajuda, dirigia-se aos velhos conhecidos da casa. E, no então criado “Centro de Operações Norma Asno”, ali instalado, o governador do estado, desfeito, conversava, sem tirar os olhos do celular, com o chefe maior da instituição de segurança pública... Um policial, após se aproximar das duas autoridades, comunicou-lhes que haviam localizado o suposto automóvel usado no sequestro.
          – A duzentos metros do local. – concluiu.
          No entanto, a informação nada rendera. E, às onze horas, quando o então grampeado celular do governador tocou, apresentando no identificador de chamadas um desconhecido número, houve silêncio, e ele, ao atender, nos alto-falantes a voz desesperada da senhora Asno, se ouviu:
          – Livre−me daqui, Sinar. Estou assustada, sinto forte cheiro de gasolina.
          Em gestos, o secretário de segurança pediu ao governador para que nada respondesse e, usando a extensão, disse:
          – Quem está falando é o secretário de segurança, senhora Asno. Como conseguiu manter o contato?
          – Algo deu errado, e eles se ausentaram por um cômodo à direita.
          – Sabe dizer-nos de onde está falando?
          – Impossível senhor! Nada avisto através da vidraça da janela protegida por tela. É uma minúscula casa erguida recentemente ao que parece. Estou amarrada em uma cadeira com as mãos livres. Há uma mesa, um desconhecido aparelho sobre ela, e a base do telefone do qual estou falando. A porta principal fica a alguns passos de mim. O silêncio é imenso, escuto, apenas, o canto dos pássaros.
          – Sabe precisar quanto tempo se gastou para chegar a esse local?
          – Tiraram−me o relógio. Trocamos de carro e me encapuzaram. Circulamos muito. Ao pararmos, havia um forte cheiro de mata e caminhamos por um local úmido do qual desprendia um forte cheiro de terra… Subi uma escada grotesca, dessas de construção, e dei alguns passos. É onde me encontro. Retiraram o capuz e me amarraram na cadeira.
          – O que conversaram durante o trajeto, senhora?
          – Mencionaram Mongas… Vou desligar, senhor, escuto barulho, acho que estão se aproximando.
          O aparelho rastreador, instalado sobre a mesa do obeso e experiente policial Perilo, nada captou.
          O tempo passava e não havia avanço nas investigações. Às 14 h, o celular do governador do estado voltou a tocar, apresentando no visor o angustiante número. Silêncio mais uma vez foi feito e o secretário de segurança, ao atender, e se identificar ouviu:
          – Imaginei que falaria com o esposo da senhora Asno.
          – Mas quem está falando é o secretário de segurança.
          – Prazer em conhecê−lo, doutor. Quem está falando é Falcão.
          – O que deseja?
          – Dinheiro, doutor! Dinheiro em troca da senhora Asno!
          O policial Perilo pediu−lhe que prolongasse a conversa... Disse, o secretário que quem gostava de dinheiro teria que trabalhar, uma vez que, do contrário, a ideia de vida se tornava extremamente pequena.
          – Por favor, doutor! Será que o pensamento, pode ser defendido, na mais alta corte universal? Estou convencido de que não. Não estenda a conversa na esperança de nos localizar, porque não conseguirão. Portanto, transmita ao seu chefe que exigimos a importância multiplicada por dez vezes o valor que ele gastou na sua recente campanha eleitoral para governador do estado.
          – …
          – Vamos conversar até quando o senhor desejar, doutor. No entanto, para abreviarmos desperdício de tempo, pergunte ao farejador como está recebendo o sinal.
          O policial Perilo, sem retirar as vistas do aparelho, respondeu com o polegar voltado para baixo.
          – Aguardo resposta, senhor secretário.
          – …
          – Pois bem, já que engoliu a língua, até mais. – desligou.
          A maior empresa de telecomunicações havia informado que os sequestradores usavam misturador de sinais. Um helicóptero munido com ‘desmisturador’ de sinais sobrevoava a cidade, a tarde caía acentuadamente e os cerca de trinta policiais do “Centro de Operações Norma Asno” faziam lanche, providenciado pelo governador do estado. Foi então que o visado celular tocou.
          – É o secretário de segurança quem está falando, senhor Falcão.
          – Que susto, senhor secretário!
          – Já está me tirando do sério.
          – A importância já foi providenciada?
          – Garanto−lhe que sim.
          – Desejamos também um helicóptero, senhor.
          O secretário, lembrando−se do nome da cidade mencionada pela senhora Asno, a qual poderia ser o destino almejado por eles, olhou para os policiais.
          – Desejam um helicóptero? – perguntou matreiro.
          – Desejamos. Possuo brevê.
          – E como será?
          – Como será o que, doutor?
          – A negociação.
          – A senhora Asno seguirá conosco e lá será libertada. Palavra do Falcão.
          – Não é decente, senhor Falcão.
          – Medida de precaução, doutor.
          – Seguirão para onde se assim me permite? – perguntou fingido.
          – Para Mongas.
          Ao ouvirem o nome do destino, os policiais e o governador vibraram, isso porque a ‘constituição’ do fronteiriço povoado de Mongas havia passado recentemente por reforma. Continuariam a confiscar 25% dos pertences do intruso, porém, não mais os acolheria de modo indiscriminado. Tratando−se de foragido por prática de atentado terrorista, sequestro ou crime hediondo, o expulsariam das terras.
          O rastreador de sinais, monitorado pelo policial Perilo, oscilava de modo favorável. O secretário, ciente do fato, prendia Falcão à linha e esse, por sua vez, também malicioso, dava−lhe esmera atenção, já que a sua companheira, que manuseava o misturador de sinais, oferecia ajuda para que fossem localizados.
          – Aprecia charada, doutor?
          – …
          – O solo é fofo e não sólido. Então, sobre um solo fofo, milhares e milhares de pessoas pastaram ou, quem sabe, continuarão a pastar.
          O secretário de segurança, bem como os demais, meditando sobre a charada, ouviu o policial Perilo gritar:
          – Foram localizados! O helicóptero rastreador os localizou!
          Em fração de segundos, o “Centro de Operações Norma Asno” se esvaziou, permanecendo apenas nele o obeso policial Perilo.
          O helicóptero, munido com detector, holofote acesso, continuava a circular em torno da casa suspeita. - uma diminuta construção, assentada no vazio, no meio do nada – Viaturas e mais viaturas chegavam. E o secretário de segurança, ao se fazer presente, em poder do megafone anunciou:
          – A casa encontra−se cercada, senhor Falcão!
          Falcão, que havia pensado em tudo, de igual modo, através de um megafone, replicou:
          – Eu os vejo, doutor! É um verdadeiro show! Ruidoso besouro com holofote na barriga circulando a casa. Vaga-lumes em terra e curiosos à distância. – os faróis das viaturas e a imprensa presente – Todavia, recomendo cautela. Escutem o que a senhora Asno tem para dizer:
          – Por favor, senhor secretário, acomodaram a cadeira dentro de uma bacia grande contendo gasolina! Ambos os cafajestes têm isqueiro nas mãos.
          – Escutou, senhor secretário? – perguntou Falcão.
          – Filhos da puta! – bradou o governador socando o capô da viatura.
          – … Aqui estamos para darmos continuidade às negociações, senhor Falcão! – disse veemente o secretário de segurança.
          – Continue a pensar assim, senhor secretário, pois como a senhora Asno relatou, dispomos de isqueiros e, num susto qualquer, tudo pode acontecer!
          – Mantenham−se serenos, por favor!
          – Nós nos manteremos, e mais serenos ficaremos quando as nossas exigências forem atendidas!
          – O dinheiro se encontra a caminho, bem como o helicóptero.
          – Estamos aguardando. Mas que seja breve.
          O automóvel, com a importância exigida por Falcão, estancou-se junto do secretário que, erguendo o megafone, anunciou que o dinheiro já se encontrava no local.
          – Ótimo, senhor secretário! Diante de seus olhos há uma caçamba; dirija−se a ela, coloque o volume em seu interior e recue.
          O secretário lhe obedeceu. A caçamba foi puxada através de fios de aço e, ao parar à porta da casa, um braço humano a recolheu. Falcão, minutos depois, dizia que aguardava pela aeronave. Um helicóptero levantou voo e desceu próximo à casa. O piloto abandonou o aparelho.
          – Senhor Falcão, o helicóptero já se encontra à disposição. – comunicou o secretário.
          – …
          Segundos se passaram e o secretário voltou a comunicar:
          – Senhor Falcão, o helicóptero já se encontra à disposição.
          – Que diabos está acontecendo? – perguntou ansioso o governador.
          – Certamente estão se preparando. – respondeu o secretário.
          A expectativa era imensa.
          – Senhor Falcão, o helicóptero já se encontra à disposição. – anunciou o secretário.
          – …
          O celular do secretário de segurança, que se encontrava no bolso do paletó, vibrava. Irritado, atendeu-o.
          – … Agora o escuto, Perilo, o que deseja? – perguntou o secretário, após ter se afastado do barulho intenso do motor da aeronave.
          – Fomos tapeados, senhor secretário.
          – Como assim, Perilo?!
          – Fomos tapeados. O ponto alto de um ato criminoso, como muito bem sabemos, é a fuga. E eles já se foram.
          – A que se refere Perilo?
          – Aos sequestradores.
          – Como?!
          – Já se foram. Acompanho a ação pela TV e, meditando, estou convencido de que não foi descuido a senhora Asno ter ficado a sós com as mãos livres tendo um aparelho telefônico à disposição. Mongas? Foi uma astúcia também. Recorda-se da primeira-dama do estado ter dito que havia caminhado por um lugar cheirando a terra e posteriormente ter subido uma grotesca escada?
          – Recordo-me, sim.
          – E Falcão posteriormente disse que a terra é fofa e que sobre a terra fofa, idiotas, pastavam. Pois bem, a casa, a qual o senhor avista, repousa sobre algum ponto da extensão subterrânea, a qual ligaria outrora mina de ouro pertencente e explorada pela nação com uma edificação pertencente aos larápios. A desativada mina de ouro se encontra ao norte, mas onde fica localizada a outra extremidade dessa ligação secreta?
          – É fato então, Perilo?
          – A culpa é da história, senhor secretário. Se o fato não tivesse sido negado, aposto que eles não iriam muito longe ou, quem sabe, o sequestro não teria acontecido. Já se foram. Siga em frente e liberte a senhora Asno.
          – Mas, Perilo…
          – Não existe outra dedução, senhor secretário.
          O secretário, boquiaberto, guardou o celular no bolso do paletó, retornou ao grupo, apossou-se da arma e, seguido por policias e pela imprensa, caminhou em direção à casa. Aberta a porta, deparou-se com a senhora Asno, conforme a própria havia anunciado, retirando-lhe, imediatamente, a mordaça. No segundo cômodo, ao ser visitado, avistaram por onde haviam escapado: através do assoalho, cuja escotilha, então fechada, levaria um bom tempo para ser destruída…
          – … Filhos da puta… – balbuciou o secretário de segurança.
 
 
ILUSÃO OU FATO?