Empurrado por uma súbita e violenta tempestade, o barco de passeio, com vinte passageiros e um tripulante, depois de percorrer quilômetros à deriva, bicou em direção a uma ilha deserta e acabou encalhando nas areias. Sem alternativa, providenciaram desencalhá-lo. Mas, logo compreenderam que o insistente e descomunal esforço empregado seria em vão, pois a embarcação não arredava recuo de um milímetro sequer.
–… Maldição…
A embarcação não era equipada com rádio comunicador e o último contato mantido com a civilização fora momentos antes do tempo subitamente se fechar. Contato mantido através de um dos aparelhos celulares, que então somente serviam, em razão da neutralidade da área, de lanterna, câmera ou para rever postagens vencidas. Isso, pois, até quando as baterias suportassem.
Sentados nas pedras e nas areias, vigiavam insistentemente o espaço e toda a extensão do oceano. No entanto, sete horas se passaram e não avistaram nenhum sinal de auxílio. Saturado, Robson, levantando-se, perguntou:
– Que horas são?
– Dezessete e trinta.
– Logo escurecerá. – observou outro interlocutor.
Na rústica cabana existente, havia material de pesca, pacotes de velas e fósforos... Torciam para que o proprietário logo aparecesse. A escassez de água potável era eminente...
Duas luas já tinham passado sobre as cabeças deles e nada de socorro. Na terceira noite, Sabrina e Laerte, acomodados ao ar livre, conversavam. Sabrina, depois de olhar para as brancas espumas que se formavam sobre as areias, fita a embarcação encalhada, bem como o breu do oceano que se unia com o céu estrelado...
– ... Jó... – pronúncia Laerte.
– Jó?
– O que Artur fizera para que permanecesse doze anos encarcerado? Absolutamente nada. A partir do momento do flagrante, só foram maus-tratos. Ninguém nunca lhe esclareceu o que havia acontecido. Apenas escutava vagas explicações do fato que não condizia com o seu histórico de personalidade. Todavia, recordava-se dos momentos que antecederam ao propagado feito: estava no lugar errado com pessoas erradas.
– Não estamos com pessoas erradas.
–… Mas, como um dia as portas da liberdade foram cerradas, outro dia foram abertas. O seu irmão, o único membro restante da família, o aguardava. Implorou para que o acompanhasse. Artur recusou, pois sabia da dimensão do teto onde ele e a esposa descansavam a cabeça. Afinal, não queria causar-lhes transtornos. Tranquilizasse, seguiria os passos de Jó. Cumprindo a palavra, evitou lançar mão do alheio e estendê-la com cuia. Conheceu a fome e o frio. Dormiu, sob viadutos e em árvores. Certo dia, conheceu Safira em um ponto de ônibus. Continuaram a se encontrar. Entrosados, resolveram estender a conversa a uma lanchonete. Artur contou-lhe sobre a tragédia ocorrida e como vivia. Por mais que se esforçasse, não conseguia emprego. Afinal, estivera preso dos dezoito aos trinta anos de idade. Safira refletiu. Pela aparência cuidada, os trajes e a conversa, jamais imaginara que aquele homem era uma andorinha…
– Andorinha?
– Perdido e desamparado. Era ela uma solitária jovem residente na capital, proprietária herdeira de um imóvel em decadência, situado numa área em plena valorização comercial. Artur falava a verdade? A história a assustou. Os encontros não mais aconteceram. No entanto, voltaram a se ver em uma feira livre. Artur, suado, carregava um cesto na cabeça contendo enormes melancias. Ao se cruzarem, ele balbuciou: “Como vai você?” E se foi com pernas bambas em razão do peso que carregava. Sentindo dó, seguiu-o e disse-lhe que permanecesse por ali. Conversaria com o gerente da transportadora na qual trabalhava. O superior fora atencioso e, três meses depois, lhe dizia que estava impressionado com o espírito daquele camarada. A gratificante observação do chefe serviu para que manipulasse positivamente o horário de saída de ambos do serviço. Meses depois, moravam juntos. Artur mantinha a elegância de sempre. Numa manhã de domingo, Jó, vulto bíblico por quem tinha profunda devoção, manifestou-se para ele. Artur voltou-se para ela e perguntou se nunca tinha pensado naquilo. Aquela área desperdiçada da residência poderia ser transformada num lucrativo estacionamento. Correu para a janela e, juntos, ficaram analisando. O investimento seria de baixo custo. Bastaria derrubar o muro e ajeitar a papelada. Comportaria trinta automóveis. Ela concordava? Nunca tinha pensado naquilo. Concordava sim. Essa história Safira contou para os atentos ouvintes do coquetel de inauguração de um grande estacionamento. “Reis do Estacionamento”. Fama que já gozavam.
– ...
Olham para as brancas espumas que se formavam sobre as areias, para a embarcação encalhada bem como para o breu do oceano que se unia com o céu estrelado.
–… Lindo, se não assustador…
Sabrina, de repente, ergue-se e, tomada de alegria, pergunta:
– Que luzes são aquelas?!
Laerte também se ergue.
–… É uma embarcação… Parece que vem em direção da ilha.
Sabrina grita para os demais náufragos alojados na cabana que o socorro se aproximava.
A MANIFESTAÇÃO DE JÓ
ILUSÃO OU FATO?