CARUMIM X SÃO PEDRO

 A coisa tendia a complicar, pois o magoado Carumim havia desencarnado; encontrava-se diante de São Pedro, e o arquivo do sistema, iniciado com a letra C, havia entrado em pane. Assim sendo, São Pedro, ao lhe explicar o problema, pediu-lhe que aguardasse no purgatório a indicação do seu destino.



          – Não irei e, se chamar seguranças para me conduzir à força, gritarei que isso aqui é igual à merda lá de baixo. – esbravejou Carumim.
          São Pedro, observando o comportamento do recém-chegado, fitava-o com paciência, enquanto o desencarnado continuava elencando suas justificativas.
          – Minha ficha é limpa, senhor São Pedro. Portanto não me submeterei ao constrangimento.
          – Qual seria o constrangimento, senhor? – quis saber São Pedro.
          – Dono de uma ficha limpa, seria horrível para mim, ter que me juntar com porcos.
          São Pedro lhe disse que não via a coisa daquela forma. Seria apenas por questão de minutos e de sensatez. Aguardaria no purgatório até o sistema restabelecer e, uma vez restabelecido, poderia conferir-lhe os dados. Seria possível informar-lhe se ali permaneceria para aprimoramento da alma ou se seguiria para o céu ou o inferno.
          – Não! Aguardarei aqui. – afirmou.
          São Pedro, pacientemente, pediu-lhe que observasse o número de desencarnados que também aguardavam atendimento. Carumim, sem dar importância ao apelo, indagou-lhe se estava a par do motivo que o levara a desencarnar.
          – Evidente que estou, senhor.
          – Sou vítima gratuita de confrontos, senhor São Pedro. Intermináveis confrontos!    Encontrava-me sob o viaduto, no meu cantinho, quando, de repente, pumba! E, por ironia, nunca protestei sobre coisíssima alguma. O caso é que, se existe protesto, é porque existe algo de errado. E, como os exploradores lá de baixo não aceitam reivindicação, alugam brutamontes para reprimir; resultado: o inocente aqui sobrou.
          – Incompreensão, não é verdade?
          – Perfeitamente!
          – Mas é justamente a ela que o senhor está recorrendo. – observou São Pedro.
          – Ora, São Pedro, que comparação mais tola.
          – Eu sei, senhor, que a cada momento o número de correntistas aumenta, e a sua intransigência está dificultando o desenvolvimento do serviço.
          – O senhor sabe que eu posso escapar de volta lá pra baixo?
          – Um direito que assiste a todos, senhor.
          – Não morro de amores por aquela pocilga, mas estou tão irado com a estupidez que me tirou o ar das narinas. Se me der na telha de retornar, não pense o senhor que retornarei me encarnando na figura de um mané qualquer. Como vingança, serei ruim, mas tão ruim... Encarnarei num mané qualquer com as ‘virtudes’ de Hitler. Aí será quando, mais uma vez e num grande espanto, perguntarão: “Onde Deus se encontra que não vê isso?!”
          – Que assim proceda, senhor, mas não se esqueça de que somos nós que controlamos as chamas do fogo do inferno. – advertiu São Pedro.
          Um desencarnado que aguardava ansioso pela resolução do impasse protestou:
          – Por favor, São Pedro! Ainda dar trela a um banana desses!
          Carumim fitou-o, balançou a cabeça e resmungou:
          – É um horror, São Pedro! Um horror! A vida lá embaixo é um horror. Vivíamos modestamente, mas vivíamos bem. Então, um dia, resolveram construir em nossas terras um túnel vertical que ligaria Curibeixá ao outro lado da terra. Imagina o senhor tamanha aberração?
          – …
          – Orquestração dos espertos, senhor São Pedro! Fomos desapropriados, e a indenização paga não deu para merda nenhuma. Resultado: meus pais, meus irmãos e eu fomos parar na capital. Ora, para quem só sabia arar e cultivar foi muito difícil conseguir trabalho, e aos poucos fomos nos desgarrando. Tinha doze anos de idade e conhecia a terra como ninguém, mas não conhecia o asfalto… No entanto, não culpo o meu fracasso; nem a mim, nem a ninguém. Que fracasso seria este se, em poder de um balde com água e flanela, era considerado bom? E o tempo passou.
          – E o tempo aqui também está passando. – observou São Pedro.
          Carumim permaneceu calado. Eis que outro impaciente desencarnado gritou:
          – Benditos sejam os encarnados! Se essa palhaçada fosse lá embaixo, já teria acabado há muito tempo.
          – São essas misérias assim, São Pedro. – comentou Carumim – Insensíveis à exigência do direito alheio. Observe: quem justamente provoca. Eu, então encarnado na figura de um mané qualquer, pousando de Hitler… A família dele iria se lamentar muito.
          – Não apreciamos preconceito, senhor. – advertiu São Pedro.
          – Sei que preconceito é antônimo de respeito, senhor São Pedro. Ora, São Pedro, no frigir dos ovos, lá embaixo, só existe uma única raça, que é a de encarnados. Quando estão por cima da situação, representam, indistintamente, uma desgraça só.
          – Não irá aguardar no purgatório? – perguntou são Pedro.
          – Negativo. Quero aproveitar a oportunidade para dizer-lhe, a bem da verdade, que aprecio mais o Filho do que o Pai.
          – São uma única Pessoa, senhor.
          – O Filho é pacificador, senhor São Pedro. Já o Pai é guerreiro… Entretanto, amei o Pai sobre todas as coisas. Nunca usei o Seu Santo Nome em vão. Santifiquei os domingos. Honrei papai e mamãe. Nunca matei. Nunca adulterei. Nunca furtei. Nunca levantei falso testemunho. Nunca desejei a mulher do próximo nem nunca roubei. E, para seu governo, zelei pelo Pai Nosso, mais que ninguém.
          São Pedro, atento à tela do monitor, percebendo que o sistema retornara, de repente sorriu e gritou:
          – O próximo!
          Naquele instante, Carumim foi mergulhado em um mundo estranho.
          – Meu Deus! – exclamou ele maravilhado.
          E como se a voz viesse do além escutou:
          – Bem-vindo ao paraíso fiel, Carumim. Conviverá, enfim, com almas semelhantes à sua.
 
 
ILUSÃO OU FATO?