RELATO DE EXPERIÊNCIA VIVIDA - 0 RELÓGIO

          Anita, 49 anos, retribuiu às saudações e diz que, apesar de quinze anos terem se passado, ainda sentia-se em frangalhos. Ainda fazia parte do Grupo Sandri, porém, na qualidade de aposentada…
          – Na qualidade de precocemente aposentados estão: Loan, Martin e eu... Pulamos a fogueira porque foi num domingo. O que não fora suficiente para que centenas de pessoas tivessem também pulado conosco. Livrar-se disso entre quatro paredes, respondendo a perguntas muitas vezes com propósito de enfiar o detalhista no saco. Traumático por dois motivos: por ter vivido o irresponsável fato e pela tentativa de querer forçar o detalhista a vestir uma camisa que não lhe coubesse... Competia também a mim à secretária Anita ler as correspondências recebidas e encaminhá-las aos setores devidos. Em um dos meses que antecederam à explosão do reator da Usina Sandri, assim o fazia. Com certa correspondência em mão, voltei a procurar o nome do remetente: não havia. Mas percebi que se tratava de alguém de nosso convívio. Reli, cocei a cabeça, levantei-me e me dirigi para a sala do chefe imediato e solicitei que lesse. O camuflado colega que posteriormente fora identificado como Martin, solicitava que apurássemos quem havia perdido o relógio, e de onde o respectivo dono viera. Tal inquietante imaginação de onde teria vindo, o afligia a ponto de passar por tenebrosas noites de insônia. Não revelava seu nome porque, caso fosse apenas uma imaginação, teria de enfrentar possíveis retaliações que iriam de perseguição até mesmo à demissão. Loan, o nosso chefe imediato, lançou mão do telefone e, a partir dali, a procura pelo dono do relógio fora saltando de setor em setor, mas finalmente estacionou. O engenheiro que havia perdido o relógio atenderia ao convite. Cumprido o combinado, obtivemos, de livre e espontânea vontade, a seguinte confissão: antes de perdê-lo, tinha inspecionado o novo tanque de água que alimentaria a refrigeração do reator. Estivera no almoxarifado e, em seguida, no banheiro. Na sala, preparando-se para encerrar mais uma jornada de trabalho, dera por falta do relógio. Retornou ao almoxarifado e ao banheiro. Como não o encontrou, no dia seguinte, voltaria a procurá-lo. Das perguntas elaboradas por Loan, assim respondera: a inspeção do tanque fora no topo do mesmo. Caso o relógio tivesse caído no seu interior, teria visto. No tanque havia água, pois estava sob inspeção… O crucial: o tanque já tinha sido aderido ao sistema… Esse novo tanque de água que já tinha sido aderido ao sistema, alimentaria por gravidade o duto de água que, por conseguinte, alimentaria “artérias” de refrigeração do reator. Procuramos pelo relógio e não o encontramos. Então, o nosso entendimento fora de que o relógio teria se desprendido do pulso e, sem que tivesse percebido, caído no tanque com água. Reuniões com a presença de técnicos passaram a acontecer. Movimentação que durou cerca de uns oito dias. Num desses dias de trabalho intenso da equipe técnica, conseguir escutar, que não haviam instalado a tela de proteção no fundo do tanque, e que o relógio aparecia em uma das radiografias. Havia percorrido oitenta metros e acomodava-se a centímetros da descida de água de uma das “artérias” de refrigeração do reator. No entanto, não havia motivo para preocupação. O relógio havia se acomodado e adquiriria raízes, cuja “colheita” estava programada para cinco anos. Mas, um imprevisto acontecera à usina termoelétrica de Psicuri. Ela entrou em pane e a capacidade de produção de energia permaneceria reduzida por meses. Então, na madrugada do fatídico domingo, Loan telefonou-me e disse-me que Noêmia havia ligado de dentro das instalações da usina para ele. O novo superintendente chefiava uma equipe de técnicos. Aumentavam gradualmente a potência do reator. O relógio estava a todo momento sendo observado, permanecia inerte. Dava para ver, através das radiografias, a “boca de uma das artérias” adiante. Eram loucos. Um pouco além da força suportável, o relógio seguiria e cairia em uma das caçapas. Leon confessou que estava preocupado, havia um amor platônico entre ele e a Noêmia. Não queria perdê-la... Às nove horas do fatídico domingo, o meu esposo e eu seguíamos de carro para a praia. Falou-me algo e logo aumentou o volume do rádio anunciando que o reator da usina Sandri havia explodido… Quantos colegas estavam na usina no momento da explosão, não sabemos. Quantas pessoas além-fronteiras foram alcançadas pela radioatividade, também não sabemos. O mais estarrecedor: a única ação impetrada que ainda tramita na Justiça decaiu para a seguinte discussão: quem veio primeiro? O ovo ou a galinha? Ou seja, quem foi o primeiro ocupante da região? A usina ou as então desabitadas edificações existentes em volta?



ILUSÃO OU FATO?