TRAÇOS DA VIDA

 A história da senhora Lana, dona do armazém TRAÇOS DA VIDA, era rica em maldades. O repórter local Adrio, carente de matéria, resolve entrevistá-la.



      – Tentar elevar a vida de alguém como exemplo é complexo?
           – A vida, que serviria de exemplo, seria composta. Haveria contragosto em algum aspecto. No entanto, seriam coisas pessoais. Contragosto, portanto, ficaria à deriva.
           – De fato, tentar elevar a vida de alguém como exemplo é complexo. Como foi que a senhora conheceu Artur Liam.
           – ... No final de uma tarde do início dos anos cinquenta. O motorista da camionete que nos transportava havia ignorado o aceno de um senhor, proprietário de um automóvel que estava no acostamento com o capô erguido. Contrariada com a descortesia, bati no teto da camionete solicitando ao motorista para que parasse. Feito isso, desci e saí em direção do atônito homem. Ao aproximar, ele me avisou que o meu transporte havia partido. Não dei importância e perguntei o que havia acontecido, tendo ele me respondido que o radiador havia secado. Um vasilhame resolveria. Disse. Assim sendo, guiado por mim, descemos. Vencido o acentuado declive, livrando-nos da mata, avistamos o córrego. Enchendo o vasilhame, perguntei se não tinha visto aquele presente da natureza. “Vem de longe?” Ainda indaguei. Vinha sim. Retornamos para o automóvel e, minutos depois, o vasilhame estava de volta ao porta-malas, quando então nos apresentamos: “Lana - 17 anos.” “Artur Liam - 47” Rimos. Retirou o maço de cigarros do bolso e, oferecendo-me, aceitei. Fumando, Liam disse que se dirigia para a cidade de Virgínia. Repliquei que ficaria um pouco antes, no alojamento dos trabalhadores da fazenda. Prontificando-se deixar-me no local, disse em tom de brincadeira que, a depender, quando pedras se tocavam deveriam criar limo. Sorriu e adentramos o automóvel. “Quer dizer que, a depender, quando pedras se tocam devem criar limo.” Conversou com o carro em movimento. “Ouvir dizer.” “Sabe ler e escrever?” Sabia. “Vem do plantio ou da colheita?” “Da colheita.” “Melancia?” “Sim.” “Quantos grãos existem no interior de uma melancia?” Respondi que nenhum. No interior da melancia havia sementes. Balançou a cabeça, ligou o rádio, e silenciamos. Ouvindo música, sentindo o vento tocar no rosto, olhava a verde paisagem que ia ficando para trás. Momentos depois, no ponto em que ficaria, quis saber se desceria ou seguiria. Não sabia qual seria o meu destino. No entanto, em razão das perguntas que me havia feito, deduzi que seria algo melhor. Retornava da colheita, portanto estava trajada de espantalho. Perguntou-me se, em Virgínia, havia loja de roupa feminina e hotel também barato. Olhei para ele e disse que havia. “Acomodações separadas.” Salientou. Na loja, a que mais nos interessou sugeriu trajes de trabalho ao que parecia, a meu critério e peças íntimas, tudo dentro de um orçamento controlado. Disse-me algo que não entendi. “Sapatos não seriam problema.” Mais ou menos isso. Saindo da loja, observei que não tinha comprado nada para ele. Os seus pertences estavam no porta-malas do carro. Por volta das 22 horas, jantaríamos com um casal. Então, quis saber se iria em trajes de trabalho. “Trajada de espantalho que não cairá bem.” Respondeu.
          – No povoado em que vivia, interagia com pessoas de idade avançada.
          – Almoçava diariamente com o formidável Tom, de 64 anos. Durante o almoço sempre me perguntava: “Lana! Deseja saber por que se senta ao meu lado e come a mesma comida que eu como?” “Por que arrumo a mesa como gosta.” “Sente-se diminuída com isso?” “Não.” “Retribuo?” “Retribui.” Certa feita, contei-lhe que Ulisses, de 72 anos, havia me falado que a sociedade induzia discretamente o cidadão à perversão, porém, quando se sentia incomodada, apedrejava o pervertido. Tom, após ouvir a conversa, salientou: “Lana! Existe roupa e corpo. Um corpo troncho precisa se esforçar para vestir uma roupa bela. Por sua vez, um corpo belo precisa se esforçar para não vestir uma roupa troncha. Saímos recentemente de uma guerra; devemos compreender e saber administrar os nossos traumas. Mas veja o que pretendo passar para você a fim de que não desperdice algo valioso que possui: o discípulo Pedro foi fiel. A chave do céu pertence a Pedro.”
          – Um ensinamento?
          – Sim.
          – Continue.
          – Durante o jantar marcado para as 22 horas, para minha tranquilidade, desvendou-se a missão de Liam, na Cidade de Virgínia. Havia alugado um galpão; instalaria um centro distribuidor de calçados. Retornamos ao hotel. Por iniciativa mútua, o protocolo de acomodações separadas foi quebrado...
          – Dormiram juntos.
          – ... Às 7:30 horas, estava vestida com um dos uniformes que havia comprado, pronta para executar o que fosse determinado.
          – Por exigência dele?
          – Não. Liam costumava balançar a cabeça. Tomamos café e nos dirigimos ao galpão.
          – Hoje, o armazém TRAÇOS DA VIDA, de sua propriedade.
          – O espaço foi ampliado. Havia apenas a porta do reservado e uma carteira com três cadeiras e algumas luminárias. Com cara de administrador, Liam colocou uma pasta grande, muito usada na época, sobre a carteira e a ocupou. Ao retirar livros volumosos da pasta e a calculadora gigante, para não atrapalhá-lo, peguei uma cadeira, afastei-me e fiquei distraindo-me com o teto.
          – Distrai-se com o teto?
          – Sim.
          – A senhora também quebrou o protocolo de acomodações separadas. 
          – Sim.
          – Olhando para o teto, distraindo-se, sonhava com o império conquistado por Pedro?
          – Acreditará na resposta que darei?
          – Provavelmente.
          – Se não quiser acreditar, não tem problema. Só não implorarei por crédito uma vez que tentar justificar maldades criadas é o mesmo que dar pérolas a porcos. Distraía-me com a pintura malfeita.
          – Tudo bem, senhora.
          – Ao meio dia, saímos para almoçar. Não havia telefone, ao menos em Virgínia. Tudo era feito através do telégrafo. Um telegrama o informou de que a encomenda chegaria ao meado da tarde. Durante o ócio, Liam recebeu uma visita que posteriormente me agradou. Fora o capataz da fazenda. Liam lhe disse que a sua sobrinha não mais retornaria ao campo. Quando pensava em cerrar as portas do galpão, isso em razão do adiantado cair da tarde, dois caminhões abarrotados de calçados surgiram. Liam contratou dois homens para descarregá-los e nós, Liam e eu, arrumávamos as caixas, tarefa que se encerrou as 5:00 horas da madrugada.
          – Usava você?
          – Recorrendo a tal raciocínio, posso dizer que a recíproca seria a mesma.
          – Os seus pais?
          – Rescaldo de uma guerra também é devastador. Liam nunca tocou nesse assunto. Percebia que tinha vontade, mas nunca tocou. Também nunca toquei sobre particularidades da vida dele.
          –...
          – Chegou o momento de Liam retornar à capital. Instruiu-me nas tarefas que exerceria, antecipou o salário combinado, alugou um quarto de pensão mais em conta e partiu. Um mês depois, estava de volta. Inspecionou o livro que constavam entrada e saída de mercadorias, conferiu notas fiscais e o estoque. E me aplaudiu. No terceiro ou quarto mês, quando retornou, dei-lhe a notícia.
          – Estava grávida.
          – Não existia isso: “Como deixou acontecer?” Opção para que não acontecesse era mínima…
          – Continuando a trabalhar?
          – Continuando a trabalhar. Foram dias difíceis quando Alan nasceu. Liam alugou uma casa e passei a morar com o bebê.
          – Não levou mão à cabeça e disse: meu Deus! O que fiz?!
          – Estava com dezoito anos. A leveza da idade continuava a proporcionar apenas um tempo: o presente. Entendeu? A leveza da idade continuava a proporcionar apenas um tempo: o presente.
          – … Entendi, senhora.
          – Alan tornou-se menos dependente; contava com ajuda de uma prima e tinha colocado na cabeça que convivia com um caixeiro-viajante. Matriculei-me num curso noturno e fui vivendo dentro desse meu universo.
          – Feliz?
          – Gerenciava o depósito de uma grande distribuidora de calçados. Proporcionava felicidade.
          – Sentimentalmente?
          – Como disse, coloquei na cabeça que convivia com um caixeiro-viajante.
          – Sobre a identidade de Liam?
          – Notas fiscais revelaram o seu sobrenome: filho de um grande fabricante de calçados.
          – Os anos foram se passando e a tempestade viera.
          – A bonança dos quase vinte e cinco anos se ia. Sinais de desmoronamento eram visíveis. Novas fábricas de calçados, nova dinâmica de comercio, enfim. O meu senta-levanta da cadeira declinava. A ponto de contar dez vezes ao dia. O que era péssimo em número de atendimento ao cliente. Liam havia me preparado para o nosso sepultamento. Disse-me em subterfúgios algo mais ou menos assim: havia dois tipos de falecimento: um de fato e outro fantasioso, nesse último, os amados teriam de aceitar a impossibilidade de se verem.
          – O depósito sob a sua gerência seria fechado.
          – Treze depósitos já tinham sido fechados... Ironicamente fora num final de tarde de um dia do ano de 1975. Ao avistar o inconfundível Cadillac azul, rabo de peixe, adentrar a rua, gelei. Era Liam num meado de mês. Seu hábito de visitas era no final de mês. Ao descer do automóvel e caminhar cabisbaixo petrifiquei. Acariciou-me e perguntou por Alan. Clinicava numa unidade médica, mas nesse dia, coincidentemente, talvez estivesse em casa. Já tínhamos telefone. Telefonei para o Alan. Momentos depois comparecia. Pedira-me licença, distanciaram e passaram a conversar.
          – Alan sabia da história de vocês?
          – Contei-lhe a nossa verdadeira história. Conversa sadia encerrada, pois não havia motivo para que não fosse, Alan se afastou e Liam aproximou-se. Estava com 72 anos, e eu com 42. Preparados para o sepultamento, ofereceu-me cigarro, aceitei e fumamos pensativos. Um caminhão passaria para recolher os pertences da empresa. A casa em que residia e o galpão já estavam praticamente em meu nome. Disse-me. Quando retornaria? Quis saber. Nada respondeu.
          – Ele era ciente de que você sabia que era casado?
          – Desde o início. Eu sabia que ele era casado e ele sabia que eu era órfã. Realidades que evitávamos conversar.
          – Por que isso?
          – Sementes que certamente desenvolveriam interpretações desgastantes. Passou-me um envelope contendo duas dezenas de maços de cédulas de dinheiro e sugeriu que transformasse o galpão num armazém. A cidade de Virgínia precisava de um armazém. Beijou-me, e nada mais conversamos.
          – Amor ou conveniência de ambos?
          – Honramos com os nossos compromissos. O que não deixa de ser amor. Inclusive extensivo aos familiares dele. Eu tinha de compreender e aceitar que ele não deixou e nem deixaria a família para viver a meu lado.
          – Sentiu-se derrotada?
          – Lutei com forças contra um ego incompreensivo. Evitei usar roupa troncha. Ainda hoje, aos 57 anos de idade, do alto do meu escritório, vejo-o adentrar o estabelecimento. No entanto, são sombras de uma vida que assim se passou e deixou saudade.
          – Nunca se contataram?
          – Para evitarmos problemas, nunca mais nos falamos.
          – Uma curiosidade.
          – Sim.
          – Caso a deixasse desamparada?
          – Tratando-se de sentimento, não é legal trabalhar-se com hipótese circunstancial. Nada será verdadeiro.
          –… Acredita na história…
          – Do Cadillac azul que, durante as madrugadas circula as ruas da Cidade de Virgínia?
          – Sim.
          – Criação para me provocar. Como se eu tivesse a ver com a madrugada. Infâmia sempre à tona quando os preços das mercadorias são reajustados. Como se eu, a culpada.
          – Conversando pessoalmente, construir uma nova imagem da senhora.
          – Exemplar?! Reconheço ser impossível. – enfatizou a senhora Lana, erguendo-se e estendendo-me a mão.
 
 
ILUSÃO OU FATO?