Demarco, suspeito da morte do desembargador Bornai, consegue escapar da possível condenação, associando uma suposta verdade a uma fantasia.
“A bola de nosso amiguinho Nerinho amanhecera cortada. Mamãe, indagando quem havia praticado a maldade, travesso, confessei. 'Como? ' Indagou ela. ' Com a faca. ' ‘ Com que faca? ’ ‘Com a faca que guardo sob o tapete. ’ ‘Que tapete, Demarco? ’ ‘Sob o tapete, mamãe. ’ Mas por que exaltação de dúvida sobre existências de faca e tapete? O nosso caçula era hemofílico. Então mamãe mantinha severa vigilância sobre possíveis perigos. Assim, não acreditou na versão e atribuiu suspeita a Marquinhos, outro amiguinho nosso, algoz do dono da bola, Nerinho…
... O desembargador Blanco Bornai levava uma vida tanto pessoal quanto profissional bagunçada. Recebia todo tipo de elemento em seu apartamento. Assassinado, surgiram nomes suspeitos, e o meu nome sugerido por alguém engrossou a lista. Semelhante aos demais implicados, neguei o ato. Mas o meu nome tinha 'padrinho'. As investigações foram encerradas e a mim, forte suspeito, coube recolhimento atrás das grades. Num desses difíceis dias, mamãe me visitou. De conversa em conversa, relembramos a história do incidente com a bola do Nerinho. 'Foi você que cortou a bola do amiguinho?' 'Não, mamãe. ' 'Posteriormente soube que vocês, naquele dia, haviam brigado.' ' Não fui eu.' Retirando-se amargurada com a minha situação, como não podia deixar de ser, fiquei analisando o distante episódio. Em dado momento, como se tivesse sido impulsionado por alguma força, me ergui e, nas grades, vi no jogo da faca e do tapete uma luz. Mas teria de existir faca e tapete. Jornais cedidos por carcereiros, foram instrumentos de pesquisas, quando descobri que a pessoa que me acusava de ser o autor do assassinato era casada com alguém de renome e, em frente ao prédio em que o desembargador residia, havia um estabelecimento pomposo, porém extremamente promíscuo. Faltava, portanto o 'tapete' ou até mesmo a 'faca'. Matutando, lembrei de que mamãe, numa das visitas que fizera, com a intenção de me ensinar a ser gente, havia deixado um livro que destacava a vida de célebres e ilustres homens. Então, munido com 'faca' e o 'tapete', sinalizei, que estava resolvido confessar. Audiência concorrida, porém sem a presença do público. Às portas fechadas, como dizem. Ao ser perguntado por que havia decidido confessar, respondi que tinha lido sobre a vida de Caio Mezon. Um ilustre homem, até os quarenta e cinco anos de idade, considerava-se não ser ninguém. Mas, em dado momento, observou que tinha muitos anos de vida pela frente. Suficientes para pôr desejos em prática. Aos sessenta anos de idade, adentrou a sala de um tribunal na condição de juiz. Fora considerado grande professor de direito e faleceu aos oitenta e oito anos de idade, condecorado como um dos mais nobres juristas do país. Quanto à pergunta em si de ter resolvido confessar, disse que tinha vinte e cinco anos de idade e pretendia aproveitar o tempo da minha justa sentença para não fazer feio perante a imagem do ilustre Caio Mezon. Aproveitaria também a oportunidade para pedir desculpas aos familiares da vítima. Evidente que não houve aplausos. Quando me perguntaram qual fora a motivação do crime, respondi que recusei o pagamento atirando-o no chão. O desembargador, sentindo-se ofendido, esqueceu-se da perna manca e acertou minha cabeça com a bengala. Enfurecido com o golpe, o engarguelei até a morte. Ao concluir a fala, percebi sobrancelhas unidas. O próprio advogado de acusação perguntou-me a quem me referia. Respondi que me referia ao desembargador Blanco Bornai. ‘Blanco Bornai não é manco. ’ Balbuciou o juiz. O meu representante pediu-me para que prosseguisse, porém o atônito advogado de acusação quis saber quem havia me apresentado ao desembargador. Respondi que nos conhecemos na Praça Alves. O gracioso cão Spitz soltou-se da coleira e eu evitei que corresse para a rua. Conversamos e, a partir daquele momento, firmamos amizade. A irmã da vítima, em alta voz, acusou-me de mentir, uma vez que, desde quando Blanco Bornai tinha afeição por cães? Conversas exaltadas avolumando-se, o juiz suspendeu a sessão por quinze minutos. O meu defensor, cujas roupas cheiravam a faculdade, isso, pois, fora o que mamãe pode pagar, confidenciou que o currículo inaugural dele seria uma tragédia. Repliquei que sairíamos vitoriosos. Orientei-o de como proceder e aguardamos pelo reinício da sessão. Sessão reiniciada, o bom estagiário pediu-me para que descrevesse os últimos momentos com a vítima. Contei que tratei de apagar possíveis impressões digitais, sair, fechar a porta, chamar o elevador e descer. Ao deixar o prédio, caminhei receoso por que, no estabelecimento em frente, mais ‘insalubre’ do que o próprio apartamento da vítima, havia pessoas na sacada. Continuei caminhando adiante, embarquei num ônibus… ‘Esse homem é louco! No prédio em que titio residia não há elevador.’ Soou. Meu bom defensor, ainda de modo hábil, perguntou ao juiz se podia convocar a testemunha, a testemunha que era casada com alguém de renome, o que foi autorizado. Olhando-me demoradamente, meditou e disse que o meu depoimento estava confuso. O dele poderia também estar. ‘Portanto, o senhor não está convencido?’ 'Não. ' Afirmou. Se não fui absolvido, condenado também não fui. O processo prescreveu. Confesso que, vez por outra, me pego num lugar qualquer meditando sobre a faca e o tapete. Mamãe já se foi sem me dar o prazer de vê-la feliz. Pois, quanto ao Livro dos Mestres, reconheço que não cheguei a tanto. Porém, deveras, como gente, como mamãe desejava. Vou relativamente bem posicionado, consumindo os dias."