LOUCURA

Uma vez, cruzadas aquelas terras, os deuses ficariam para trás. Todavia, seria possível viver sem eles?



          Lamos e Netícia, sedentos de glória, ignorando tal questão, avaliavam a extensão que teriam de correr.
          – Será que conseguiremos, Netícia? – inquiriu Lamos.
          – Conseguiremos. São apenas quatrocentos metros.
          Acomodando−se por trás da pedra, Lamos perguntou-lhe quantos deuses ali habitavam. Respondeu Netícia ser uma infinidade: do Amor, da Bondade, da Alegria, da Honestidade, do Caráter, da Perfeição, da Sinceridade, etc.
          – Todos ficarão para trás?
          – Claro, Lamos.
          – Por que sugeriu que atravessássemos por volta das dezessete horas? – quis saber, Lamos.
          – Baseada num conselho de um, até então, amigo de papai. Assim que ele atravessou, chamou atenção para tal particularidade.
          – E?
          – Ora, o sujeito enriqueceu. No entanto, foi uma tristeza, quando papai, certa feita, lhe escreveu pedindo-lhe uma ajuda financeira.
          – Por que?
          – Ora, Lamos. Os deuses ficaram para trás.
          Eis que perceberam a aproximação de um casal.
          – O que esperam para atravessar? – inquiriu o homem, sedento de glória.
          – Coragem. – falseou Netícia.
          – Caráter, dignidade, amor…
          – Nada representam. – replicou Netícia.
          Retirou a mochila das costas, agachou−se, apertou os cadarços do tênis e, ao erguer−se, perguntou à companheira se estava pronta. Respondendo que sim, disse ele que estavam dispostos a prosseguir.
          – Sorte para vocês. – desejou Netícia.
          Distanciando−se, ergueram−se e ficaram observando−os. Não havia mistério naquela travessia, pois a tática era avançar, correr e driblar os deuses, na medida em que fossem surgindo. Estavam indo bem, avançaram, corriam e driblavam os deuses.
          – Não sei se irão conseguir. – comentou Lamos sobre a expectativa.
          O deus da Gratidão havia ficado para trás, mas não conseguiram, porém, driblar o deus da Misericórdia, que os abraçou.
          – Idiotas! – comentou Netícia.
          – Agora, só serão sermões e sermões. – teceu Lamos.
          Com a tentativa frustrada do casal, Lamos e Netícia voltaram a se acomodar por trás da pedra, avaliando a investida:
          – Correram juntos. Correram certo. Mas vacilaram no confronto com o último deus. Deveria cair, cada um para um lado. Se assim tivessem procedido, o velhaco não os pegaria. – disse Netícia.
          Lamos, meditando, acendeu o cigarro.
          – Como será a nossa futura relação? – inquiriu ele.
          – Como assim?
          – Os deuses ficarão para trás.
          – Aprenderemos a dividir as coisas. Na pior das hipóteses, seremos cínicos.
          Ouvindo, Lamos expressou preocupação.
          O horário, dezessete horas, se aproximava. Levantaram−se e começaram a se preparar.
           – Triunfaremos, Lamos. – garantiu Netícia.
          Deixaram a pedra e seguiram em direção à divisa. Ao atingi−la, suspiraram profundamente e começaram a avançar. Cinquenta metros já haviam avançado. Cento e cinquenta metros. Olhavam as laterais, a retaguarda e se olhavam. Nenhum deus havia aparecido.
          – Vamos conseguir, Lamos. – balbuciou.
          Eis que, de repente, os deuses começaram a surgir, e os dois apertam os passos. Começaram a correr.
          – Corre, Lamos! – gritou Netícia, exigindo maior desempenho do companheiro.
Deuses e mais deuses, surgindo, os perseguiam.
          – Corre, Lamos!
          – Estou correndo o máximo que posso, Netícia! O deus do Amor quer me pegar!
          – Acelera! Foge!
          Novos deuses foram surgindo à frente e eram driblados.
          – Vamos, Lamos! Estamos conseguindo!
          Trezentos e cinquenta metros já haviam percorrido.
          – Vamos abrir, Lamos! Só há um deus à nossa frente!
          Apesar de o deus da Honestidade ter aberto os braços, o quanto pôde, foi vencido.
          – Conseguimos, Lamos! – gritou Netícia, atirando−se de cansada num novo solo.
          Lamos, que vinha um pouco atrás, ao obter êxito, imitou−a.
          – Conseguimos, Netícia. – disse ele, ofegante, com os olhos fixos no céu...
          Ficaram os deuses preocupados… agrupados… Observando−os, então, sem alma, os dois se erguerem e seguirem o caminho.

 
 
ILUSÃO OU FATO?